Freelancer: Ambição desmesurada ou lançar as bases do futuro?

Primeiramente, há que pedir desculpa pela ausência de textos. Tem sido um ano e meio muito complicado, entre o falecimento repentino da minha mãe e uma doença grave que assola o meu pai. Vou tentar, no entanto, voltar a escrever regularmente.

Falando em coisas mais agradáveis e depois de ter visto o showcase da Xbox há um jogo que continua a atrair a minha atenção: Starfield. E quanto mais coisas vejo, mais me interessa por me desbloquear core memories da minha infância. As semelhanças que parece ter com Freelancer, um jogo que me marcou um miúdo, fizeram-me não só seguir com atenção o desenvolvimento do jogo da Bethesda mas também regressar ao clássico que completou este ano 20 anos desde o seu lançamento.

Primeira imagem que vemos no jogo - Freeport 7 é a base que é destruída no início do jogo

Foi desenvolvido pela Digital Anvil e publicado pela Microsoft Game Studios (hoje conhecida por Xbox Game Studios) como uma sequela do já também clássico Starlancer (2000). Freelancer nasceu da cabeça de Chris Roberts que todos conhecemos da série Wing Commander. A primeira concepção do que viria a ser Freelancer nasceu, curiosamente, na mesma altura em que Roberts começou a desenhar Wing Commander. O objectivo era criar um universo vivo, dinâmico e em constante mudança onde toda e qualquer acção tomada pelo jogador tivesse repercussões junto dos NPC do jogo (uma ideia que vemos hoje em muitos jogos, como em Red Dead Redemption por exemplo).

O plano para o desenvolvimento do jogo era de 3 anos e em Junho de 2000 a Microsoft Game Studios estava a planear comprar a Digital Anvil, por esta altura os 3 anos já tinham sido ultrapassados por mais 18 meses. Apenas uma empresa do tamanho da Microsoft podia sustentar o desenvolvimento imprevisível e demorado de Freelancer, que estava a sofrer alterações constantes ao que o jogo ambicionava fazer. Nessa altura de Chris Roberts, que até tinha conseguido convencer a Microsoft a investir no desenvolvimento do jogo ou a desistir da compra se não acreditasse que o jogo venderia no mínimo 500.000 cópias, saiu da posição de produtor principal e assumiu uma mera posição de consultor criativo, de forma oficiosa. Durante o ano de 2001 a pequena equipa manteve um low profile, e poucas notícias se teve do desenvolvimento de Freelancer. Em 2002 saiu um demo a tempo da International Games Festival desse ano.

Pelo meio a Microsoft já tinha pedido à equipa para reduzir as ambições do jogo para se manter dentro do schedule. Coisas como voo automatizado, conversas de escolha múltipla e uma série de quests secundárias foram postas de parte. Tudo isto é, actualmente, standard em jogos de open-world mas não era em 2003. Em 2003 nenhum jogo tinha este tipo de features, e Freelancer não o teve por mera decisão executiva para cumprir timings. Ainda assim a ideia generalizada entre devs e reviewers era de que o jogo era fiel à visão que Chris Roberts teve.

James Hannigan, que trabalhou nas bandas sonoras de Harry Potter e Lord of the Rings, foi o escolhido pela Digital Anvil para compor a música do jogo em conjunto com Andrew Sega. O jogo foi lançado com um modo single-player, de história linear, e um modo multiplayer com vários servidores. Está incluído um universo alargado, com várias dezenas de sistemas estrelares para explorar. Dezenas de facções com diplomacias específicas entre si e que de facto adaptam a sua posição consoante as acções que tomamos durante o jogo. O jogo tem também um sistema de economia vivo, com preços diferentes consoante a comodidade que transportamos e o local onde vendemos/compramos. Esse sistema económico está desenhado também com comodidades legais como oxigénio ou rações, e ilegais como droga ou artefactos alienígenas. Existe também um sistema de bounty-hunting que é diferente consoante para quem prestamos o serviço. Tudo isto estava incluído tanto em single-player como multiplayer.

O jogo, no entanto, não foi um êxito de vendas, o que não o impediu de se tornar um clássico de culto dentro de uma pequena comunidade. Ainda assim foi muitíssimo bem recebido pela crítica e ganhou diversos prémios da especialidade. Um dos pontos mais elogiados foi a simplicidade com que se comanda a nave durante o jogo, usando praticamente apenas o rato. Outro ponto muito elogiado foram os gráficos, que apesar de terem sido desenhados com tecnologia ultrapassada isso não impediu o jogo de ser lindo à vista.

Mapa do Sector Sirius no jogo base - há mods que triplicam este número de sistemas
 

Os ponto negativos foram, no entanto, relacionados com aquilo que Roberts prometera quando se soube que o jogo estava em desenvolvimento. A ausência de um universo que se altera ao mesmo tempo que jogamos. As facções e os NPC adaptam-se às nossas acções, mas nada se altera fora disso. Não há alterações de território entre facções inimigas, apesar dos constantes raids e combates que vemos. E ao nível de história foi criticado o facto de não se poder fazer skip das cutscenes. A história em si também foi chamada de cliché por alguns reviewers. Os actores profissionais contratados fizeram um trabalho excelente em tornar as personagens vivas (no elenco conta-se por exemplo com George Takei, que conhecemos de Star Trek).

Vista de um dos sistemas marcados como "Unknown"

Ainda assim, 20 anos volvidos o jogo é mantido vivo por uma rica comunidade que o escolheu como jogo de culto. Há um profundo suporte de mods que trouxeram melhorias a nível gráfico e de performance, consoante a passagem do tempo e chegada de novos hardwares. É também mantido vivo por servidores oficiosos que permitem que o jogo seja jogado em multiplayer, apesar de os servidores oficiais terem sido encerrados há já muitos anos.

Imagem já com mods de upgrades gráficos

A história passa-se 800 anos depois dos eventos de Starlancer. No século XXIII a Terra, e todo sistema solar por extensão, está a ser assolada por uma guerra há 100 anos entre duas facções: a Alliance e a Coalition. Em desespero, perante a derrota iminente, a Alliance construiu cinco sleeper ships cheia de colonos e preparou-se para as lançar em direcção ao sector Sirius. As cinco naves foram baptizadas consoante as nações que as promoveram: a Liberty (EUA), a Bretonia (Reino Unido), a Kusari (Japão), a Rheinland (Alemanha) e a Hispania (Espanha). Segundo algum lore e teorias que foram formuladas por fãs terão havido mais duas destruídas no momento de lançamento pelas forças inimigas. Há mods feitas por fãs que acrescentam a Gallia (França) e que é descoberta mais tarde.

A primeira a chegar foi a Liberty, e colonizou os sistemas centrais que era ricos em matéria prima e isso catapultou Liberty para um domínio económico sobre as outras nações que se estabeleceram mais tarde.

O jogo começa com a destruição de um porto espacial por forças desconhecidas. Nós somos Edison Trent, um piloto freelancer de Bretonia em busca de riquezas. Edison é transportado até ao planeta Manhattan, capital de Liberty, e aceitamos um trabalho para a LSF enquanto esperamos que um "amigo" nosso saia do hospital para nos pagar um negócio milionário que tinha sido acordado em Freeport 7, a base destruída. No início da missão assistimos à destruição de um cruzador vindo de Rheinland para uma conferência com a presidente Jacobi em Liberty. O cruzador é destruído pela The Order, e nós ajudamos a LSF a Liberty Navy e a Rheinland Military a destruir as naves da The Order.

"Make sure he lives...he owes me some credits" - Trent (casaco castanho) para médico, sobre o "amigo" Sam Lonnigan (na maca)

 

Continuamos a fazer trabalhos para a LSF e começamos a ver algumas coisas estranhas. Pessoas começam a desaparecer... Eventualmente somos designados inimigos do estado e somos obrigados a fugir para Bretonia, começamos a ser perseguidos por bounty hunters e pela Rheinland Military. Acabamos por fugir para Kusari onde descobrimos que existe uma espécie antiga de aliens que tem a capacidade de possuir humanos, matando-os e tomando conta dos seus corpos e que se estavam a infiltrar no governo de Rheinland e de Kusari. O encontro do diplomata com a presidente em Liberty era com esse intuito e por isso mesmo a The Order destruiu o cruzador. Ao fim de um tempo começamos a trabalhar para a The Order e ajudamos a derrotar os Nomads (nome dado aos aliens).

A história termina numa nota feliz, tudo acaba bem. Somos formalmente convidados a entrar na LSF mas Trent recusa e continua a ser um piloto freelancer. A partir daí começamos a poder explorar livremente sem restrições com acesso a todo o universo.

Parte da missão em que atacamos a base do Governador Tekagi, que já não era humano mas sim um Nomad.

 

O jogo tem um lore oficial extensíssimo e que está amplamente documentado. Durante o jogo temos acesso a muitas informações que nos dão uma ideia de tudo o que aconteceu nesses 800 anos. Não é por acaso que há também muitas fan fictions escritas com base nele.

Este jogo confesso que me marcou a infância. Ainda hoje, passados vinte anos, meço muitos dos meus jogos com este standard.

Houve rumores que esteve em desenvolvimento uma sequela de Freelancer, chamada Project Lonestar, e que estaria disponível na Xbox 360 além de PC. Mas em 2006 a Digital Anvil dissolveu-se e o projecto foi abandonado. Com a Xbox Game Studios a ser dona do IP, não será de valor investir nisto? Eu, pessoalmente, gostava que sim.

Com tudo isto fica ainda a questão. Será que Freelancer foi ambição desmesurada? Avaliando pelo projecto que Chris Roberts tem actualmente poderá ser tentador pensar isso. Star Citizen parece ser o sucessor espiritual de Freelancer mas parece vir a sofrer dos mesmos problemas. Estamos em 2023 e desde 2010 que o jogo está em desenvolvimento, sendo lançado em pequenos módulos de cada vez. O jogo não parece ter um fim de desenvolvimento à vista e começamos a pensar se não será Chris Roberts que também será demasiado ambicioso.

Fica aqui uma pequena resenha a um jogo que faz parte de mim. Hoje em dia este jogo é abandonware e está disponível online gratuitamente. Deixo a sugestão de o experimentarem, mesmo que não sejam fãs de retro-gaming. E se gostarem visitem a plataforma ModDB onde vão encontrar centenas e centenas de mods e add-ons diferentes para este jogo.

Até para a semana!

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